Vida nos Mares

Entre as areias e as nuvens

Embarcamos no rio Doce pelo Oceano Atlântico próximo a costa do Espírito Santo. De lá, de onde se diz “terra à vista”, forma-se a imagem da primeira paisagem identificada: Vida nos Mares. De cores que variam entre cinzas ou castanhos nas beiradas e azuis e verdes nas partes mais profundas, essa paisagem se estende do norte ao sul do Litoral Capixaba. Ela foi o cenário da entrada de portugueses, naturalistas europeus, pessoas escravizadas de países africanos e pioneiros que exploraram a bacia do rio Doce desde o século XVII. Devido a sua grande biodiversidade e ao desenvolvimento econômico da região nos últimos sessenta anos, a paisagem de Vidas no Mares se diversificou e hoje é intensa. Na região ela se caracteriza pela coexistência de atividades econômicas de alta e baixa tecnologia, pela presença de grupos sociais envolvidos com a pesca artesanal, com o turismo, com o surfe, com a preservação ambiental e com o lazer. A paisagem de Vida dos Mares está conectada ao rio Doce pela foz, e é simultaneamente fonte de vida, de trabalho, de lazer, de subsistência, de surfe e de narrativas culturais. Na Vida nos Mares próximo à foz do rio Doce, a história de Caboclo Bernardo é uma importante referência cultural. Sua compreensão diz muito sobre a identidade das comunidades desta região. Em 2015, a lama de rejeitos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais, chegou ao mar na altura da praia de Regência Augusta. A pluma de rejeitos atingiu a reserva biológica de Comboios e o litoral ao norte e ao sul da foz do rio Doce. Desde fins de 2015 até 2020, as atividades marítimas de pesca artesanal e de lazer seguem parcialmente interrompidas na região.

Mapa temático da capitania de Porto Seguro sob a perspectiva do mar. Fonte: João Teixeira Albernaz, 1631.

Jongo cantado sobre o feito heróico de Caboclo Bernardo. Vila de Regência Augusta. Linhares-ES. 2020.

Mar em praia de Nova Almeida, Serra/ES, 2020

(…) normalmente eu saio de manhã para ir pescar, vou na praia pescar ou para alto mar. Às vezes eu saio daqui, viajo para outra cidade para trabalhar em alto mar, fico aí quinze dias, vinte dias, depende da embarcação, ou fico fora de casa. Da última vez eu fiquei quase cinquenta dias fora de casa. Porque eu fui para Aracruz, porque como o valor do mercado aqui caiu muito, aí eu vou para outro lugar. Porque na questão financeira tem preço de camarão aí acaba eu indo e voltando, a hora que eu chego aqui é isso aí. Vou pescar na praia, de dia estou com a minha família, à noite eu saio para ir na beira do cais dar uma volta. Geralmente quando não estou pescando eu chego para ficar em casa e passear com os meninos né?

Fábio da Silva Clarindo, 44 anos

Praias

As beiras de areias e de encontros

O balanço das águas do mar conduz os passageiros do sobrevoo às paisagens de Praias. As paisagens de Praias se configuram em ambientes de mar, rios ou lagoas. Elas se caracterizam por conectar dois elementos básicos para a sobrevivência física e afetiva dos seres humanos: a água e a terra. Todas as águas que compõem o território – doces e correntes, internas, contidas e salgadas – possuem uma faixa mais ou menos estreita de areia que as delimita e dá origem a essa paisagem. Elas podem ter livre acesso ao público ou ser privada. Devido à prevalência de planícies e da baixa declividade na região da foz do rio Doce, há uma grande concentração de lagoas na área percorrida. As paisagens de Praias são frequentes no município de Linhares, onde há uma grande concentração de lagoas. Ela também ocorre nas praias de Itaúnas no município de Conceição da Barra; na praia dos Padres em Aracruz e na praia de Comboios no distrito de Regência Augusta. As Praias são paisagens marcadas por sons distintos a depender da estação do ano e do período do dia. Na área percorrida elas são berçários de tartarugas marinhas e representam encontros, lazer e diversidade social. O rio Doce se conecta à paisagem de Praias na foz, próximo à localidade de Povoação e ao distrito de Regência Augusta.

Praia de Comboios no distrito de Regência Augusta, Linhares (ES). Janeiro de 2020.

Acampamento temporário de pescadores numa praia da Lagoa Juparanã, 2019

Salomão da Silva Pinto

(…) chegando no final da praia ali, você não vê mais aquele bairro, você vê aquelas pedras protegendo o mar e você pensar que ali era o meu lugar, que era o meu refúgio. Eu tinha dez anos, nove anos eu sumia andando,meu pai ficava doido comigo, eu ia pescar.

Salomão da Silva Pinto, 54 anos

Caminhadas das tartarugas para o mar na praia de Comboios. Regência Augusta, Linhares-ES. 2020.

Praia da Bugia na década de 1950. Conceição da Barra/ES. Acervo IBGE.

Praia às margens do rio no encontro com o mar em Pontal do Ipiranga. Linhares/ES, 2020. 

Turista meditando na Praia dos Padres. Aracruz/ES, 2020.

Foz

A dança das águas

A paisagem de Foz é uma dança dinâmica. É o produto de disputas e acordos que constrói e reconstrói os formatos do seu estuário em processos de longa duração. O encontro entre as águas dos rios e do mar nem sempre é perceptível. Ele pode ocorrer de forma sutil, quando é difícil identificar a origem da água, do rio ou mar. Ou de forma marcante, em rios com menor declividade e velocidade da água como o rio Doce. Paisagens de Foz ocorrem no norte, como a Foz no Mariricu e no São Mateus. E no sul , a exemplo da Foz no Piraquê-Açu. As paisagens de Foz são palcos de comunidades tradicionais, da pesca artesanal, da festa da manjuba e do robalo, do Jongo, do Congo e do Ticumbi. No litoral, os sucessivos processos de ocupação da terra e a miscigenação da população marcam as feições e cores das comunidades e ressaltam a mistura e a co-presença das populações negra, branca e indígena. A Foz no rio Doce é uma paisagem que conecta as paisagens Vidas nos Mares, Praias, Vilas e Vida nos rios. É emblemático a conexão que a paisagem de Foz promove entre as comunidades pesqueiras de Povoação e de Regência Augusta. A proximidade física gerada pela posição geográfica da foz do rio Doce promove uma liga cultural que une as duas margens. Na Foz, a “lama” que veio do rompimento da barragem de Mariana misturou-se às águas do oceano Atlântico. 

Foz do rio Doce. Linhares/ES,2020.

é o banho, é o rio, é o mar… um banho no rio, um banho no mar”
(Maria da Penha Monteiro, 57 anos) 

entra e volta… O Mariricu vem e vai por aqui. A maré encheu, volta para trás”
(Ivan Monteiro, 66 anos)

Soldats à Linhares. Fonte: Maximilian Wied-Neuwied, 1822. Fonte: https://www.brasilianaiconografica.art.br

Foz do rio Doce. Fonte: Acervo Fundação Renova, 2018

Vilas

Lugarejos centrais

Da Foz no rio Doce chega-se a Vila em Regência Augusta. As Vilas são caracterizadas como paisagens centrais e de intimidade. A centralidade deriva do processo de evolução urbana que se intensificou nos anos de 1990 e da progressiva oferta de bens e serviços. São exemplos destes serviços os supermercados, agências postais, agências bancárias, postos de saúde e escolas. Já o atributo da intimidade é reflexo da população pouco numerosa, condição que favorece a manutenção de redes de solidariedade, vizinhança e parentesco. A intimidade gera, em alguma medida, a coesão do tecido social. Os laços familiares e a convivência fazem com que as Vilas sejam literalmente o lugar onde “todo mundo conhece todo mundo”. No Litoral Capixaba, as Vilas ocorrem nas sedes de distritos, mas não somente nelas. Como exemplo de paisagens de Vilas pode-se citar a Ilha de Guriri em São Mateus; o distrito de Regência Augusta, na foz do rio Doce, em Linhares; e Itaúnas, em Conceição da Barra. Nas paisagens de Vilas, as igrejas, associações, praças e estabelecimentos comerciais são lugares de convivência comunitária e de preservação de atividades culturais tradicionais. As Vilas são paisagens de contradição. Percebe-se um saudosismo da simplicidade de outrora, ao mesmo tempo em que se valoriza o progresso simbolizado pelo asfalto, pontes e casas de alvenaria. O rio Doce se conecta fortemente com a paisagem de Vilas em Regência Augusta. Nesta paisagem, a crescente oferta de serviços especializados convive com a forte presença de comunidades de pesca artesanal.

“É muito bonita [a Praça de Itaúnas] eu adoro, vivo bem ali sentada, só olhando para a praça, é linda a praça (…)”

Evânia do Rosário Conceição

Mapa Turístico da Ilha de Guriri. São Mateus (ES)

Carnaval nas ruas da Vila de Regência Augusta. Linhares/ES, 2020.

“Regência com as suas ruas de terra batidas, com suas casas ainda de estuque outras é…acompanhando a mudança dos tempos, estão erguendo muros, colocando grades, mas ainda a gente, mesmo assim, mesmo dentro dos muros, as grades, tem pessoas simples que põe não por causa da violência, põe porque é tendência sabe? Mas mesmo assim, a gente ainda consegue saber quem nós somos, nós somos um povo da água, um povo da batida do Congo, nós somos um povo guerreiro porque somos descendentes de índios botocudos que não se dobrou a coroa portuguesa nós somos um povo que consegue pensar em coletividade, então, acho que isso tudo se transforma numa magia que está no ar e quando você chega em Regência é muito difícil você não se deixar contaminar dessa vibração gostosa”

Luciana Oliveira, 48 anos

Carnaval de rua na vila de Regência Augusta. Espírito Santo, 2020.

Praça da vila de Itaúnas. Conceição da Barra. Espírito Santo, 2020.

Patrimônios

Ícones e memória

As paisagens-Patrimônio ocorrem associadas a elementos materiais e naturais em diferentes tempos históricos. Elas podem ser igrejas, praças e edificações históricas, mas também rios, praias, mangues e matas. O que distingue essas paisagens é a sensibilidade humana. Ou seja, os sentimentos de pessoas e comunidades atribuídos a elas. Sob esse prisma, os elementos associam-se a um tipo de relação icônica que os investe de um significado compartilhado. Paisagens de Patrimônio estão normalmente sobrepostas a outras e, não necessariamente, têm “selo” de patrimônio. Dentre as paisagens-patrimônio naturais têm destaque o rio São Mateus e as áreas de preservação ambiental como a reserva biológica de Comboios. Dentre as paisagens patrimônio construídas, são icônicas a Igreja Três Reis Magos no distrito de Nova Almeida, em Serra; o Porto de São Mateus; a Praça 22 de Agosto, em Linhares; o Farol de Regência; o Trapiche em Conceição da Barra; e a ponte velha de Linhares. O rio Doce é considerado uma paisagem-patrimônio. Em toda a área percorrida ele mobiliza afetos e é apropriado em diferentes sentidos e por diferentes grupos sociais. Para as comunidades indígenas e de pescadores artesanais ele é considerado um ente familiar, fonte de trabalho, de lazer e de conexão com a natureza. Para ambientalistas, ele é responsável pela manutenção de um complexo ecossistema fluvial, lacustre e marinho.

Pintura de Seu Terto, mestre de Ticumbi, em frente a casa de cultura de Conceição da Barra. O prédio ocupa o antigo trapiche.

“A igreja pequena Santa Cruz, que é de 500 anos, e meus filhos casaram ali naquela igrejinha. Foi fantástico, a coisa mais linda!”

Georgina Morais, 70 anos

Vista do rio São Mateus, a partir do mirante. Centro de São Mateus/ES, 2020.

Antigo Farol na Vila de Regência Augusta. Linhares/ES, 2020.

Ensaio fotográfico nas dunas de Itaúnas. Conceição da Barra, 2020.

Vida nos rios

A Vida nos Rios, aqui representada pelo próprio rio Doce, pode ser formada por águas doces ou salobras, escuras ou alaranjadas. Nessa paisagem, as águas serpenteiam o território ou seguem retilíneas em leitos comprimidos ou largos, conforme a geografia de cada território. Por vezes essas paisagens têm águas sem pressa, com correntezas demoradas e silenciosas que, no começo do século XIX, conotavam mistério. Por outras, têm águas que avançam de forma veloz e ruidosa.  Na região de estudo essas paisagens abrigam uma vegetação relativamente conservada. Nela, vidas animais e humanas constroem e mantêm seus modos de vida, identidade e imaginário. Tamanha é a importância dos rios, que a maioria da população residente está domiciliada a uma distância de até 5km dos principais cursos d ‘água da região. A paisagem Vida nos Rios pode ocorrer em contextos rurais e urbanos. A Vida nos Rios no Doce foi interditada após a chegada da lama de rejeitos em 2015. O desastre evidenciou a conexão direta desta paisagem com a presença histórica da paisagem de Indústrias em Minas Gerais, no Alto rio Doce. A Vida nos Rios, outrora animada por esportistas, pequenos agricultores, turistas e pescadores artesanais, assistiu à desestruturação de um ofício que impactou famílias e gerações de pescadores e ribeirinhos. Mais do que um trabalho, a Vida nos Rios no rio Doce criou e cria referências para ver, ser e estar no mundo.

Incitou-me ele, muitas vezes, a não prosseguir minha viagem, e me apresentou sob as cores mais sombrias a região deserta que eu ia percorrer; sobretudo não se cansava de prevenir-me contra a insalubridade das margens do rio Doce: Ó rio Doce é um inferno’, tais foram as expressões que utilizou ao falar-me desse rio. Mas todas essas falas não faziam arrefecer minha curiosidade.”
(SAINT HILLAIRE, 1974[1834]). (trecho de livro) 

(…) geralmente, a maioria mexia com pesca. Pesca, caça de caranguejo, entendeu? Alguns… só que todo pescador, ele também é um pequeno agricultor, né, porque o cara não come um peixe sem farinha, o cara não almoça sem um feijão, sem um arroz, então, todo pequeno… todo pescador ele também é um produtor, de qualquer forma… entendeu?”

Pedro Ribeiro Clarindo, 51 anos

“o rio é vida né? Ele é abrigo, ele é vida, ele é ponte de um lado pra outro”

Flávia Cristina de Jesus Loyola, 51 anos

Eu só não pesco agora porque tá proibido, mas na hora que a pesca tiver aberta eu vou pra beira do rio, nem que seja pra ficar lá olhando pra água. Eu vou
(Maria da Conceição dos Santos, 74 anos)

Navigation sur un bras du Rio Doce. Maximilian Wied-Neuwied, 1822.

Fonte: https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/19707/navigation-sur-un-bras-du-rio-doce.

Salomão da Silva Pinto

“Cricaré significa… é… para os índios né? Kiri-Karé, rio dorminhoco, rio preguiçoso e o rio corre tranquilo e esse rio toda vida veio com a calmaria que existe, né?

Salomão da Silva Pinto, 54 anos

Leito do rio doce próximo à foz. Fonte: Fundação Renova, 2018.

“O rio Doce é um ente familiar” Carlos Sangália. Educador ambiental. Morador da vila de Regência Augusta.

Terra em Transe

Mudanças climáticas e eventos extremos

A Terra em Transe é uma paisagem relativamente recente e baseada na percepção individual e coletiva sobre as mudanças climáticas. Ela resulta da intensa transformação da natureza pelo homem nos últimos cinquenta anos e do consequente aumento da temperatura atmosférica. Paisagens de Terra em Transe se manifestam em processos de longa duração, como a elevação do nível do mar, ou como o resultado de eventos climáticos extremos, a exemplo de chuvas torrenciais e secas prolongadas. Elas podem desencadear tragédias sociais que envolvem perdas materiais e humanas e a redução de recursos naturais como água, alimento e biodiversidade. Elas ocorrem em ambientes rurais e urbanos. As enchentes de 2020 e 2022 na bacia do rio Doce são exemplos da ocorrência dessa paisagem e de sua magnitude. Na região percorrida, a população já vêm percebendo a  redução de espécies nativas da fauna e a redução dos cursos d’água. Essa paisagem se articula ao rio Doce em eventos de seca e de chuvas intensas. Nos períodos de seca, o nível de água do rio diminui a ponto de deixar aparente bancos de areia. Roças, animais e comunidades que dependem da água do rio ficam em situação de insegurança hídrica. Nas chuvas intensas, casas e cultivos são destruídos, estradas são interditadas e pessoas têm que deixar suas casas. 

“…mas hoje o mel diminuiu muito, você não vê mais uma abelha, ainda não se explica o por que…

Simone de Jesus, 33 anos

Pista arruinada devido ao avanço das águas do mar. Conceição da Barra, 2018. 

“Tá acabando e não é pouco não, tá! Muita! Está acabando, isso está… Tem lugares que você passa que antigamente era uma floresta, hoje em dia você não vê nada, antigamente era uma lagoa, era um lago, você vê seco, entendeu? Isso aí é nítido. Isso aí está acabando e muito e não é pouco não. Se nós não tomarmos providências a tendência eu acho que é acabar mais e mais ainda”.

Gilvan Francesbilho dos Santos, 37 anos

Via de terra no município de Linhares. Espírito Santo, 2020.

Cacau

Da Vida nos Rios vê-se o Cacau. As paisagens do Cacau são caracterizadas pelas chamadas cabrucas, plantações de cacau localizadas no sub-bosque da mata nativa, e por monoculturas. O rio Doce tem uma relação com a paisagem Cacau que remete ao começo do século XX, mais especificamente a 1920, quando essa cultura se instala nas margens alagáveis e em ilhas fluviais do rio. Desde essa época se configura o que hoje se apresenta como a paisagem Cacau. Ela surge às margens do rio Doce, mas após a recessão gerada pela vassoura de bruxa, essa paisagem se reorganiza na forma, no espaço e na relação com a mão de obra. A partir de 2010 elas passam a ocorrer no interior do município de Linhares. Novas formas de produção e técnicas de melhoramento genético são implementadas para aumentar a resistência das plantas ao sol e ao ataque de pragas. A paisagem Cacau teve uma importância política e econômica tão significativa em Linhares, que as amêndoas de cacau estão representadas na bandeira do município. Em peças artísticas produzidas na região, as cabrucas são pano de fundo de festas populares. Nas margens do Doce, devido à demanda por sombra, o Cacau teve um papel ecológico decisivo na preservação de outro tipo de paisagem que resiste no território: as Matas. Em 2015, quando  ocorreu o rompimento da barragem do Fundão em Mariana, o rejeito da mineração que desceu pelo rio Doce perturbou as paisagens de Cacau nas margens e em ilhas fluviais do rio Doce.

Cabruca. Cacau plantado no sub-bosque de floresta de Mata Atlântica. Povoação, Linhares/ES.

Bandeira do município de Linhares/ES.

“É, eu tinha uns pés de cacau, eu tinha um cacau novo assim, matou tudo, a lama cobriu tudo, que aquela lama não é igual enchente comum. A enchente comum ela dobra em cima do pé de cacau e o cacau brota de novo, ela não, dobrava em cima do pé de cacau e virava aquele tijolo em cima, virava igual como se fosse um concreto, aí se acabaram tudo”

Simeão Barbosa dos Santos, 78 anos

Selo de indicação de procedência do cacau produzido em Linhares/ES. Fonte: www.cacau.com.br

Represas

águas cercadas

As Represas são paisagens construídas na qual há barragens ou canais que retém/desviam cursos Ao se conectar à paisagem de Represas, o rio Doce verte para o sul do território. As Represas são paisagens construídas na quais há barragens ou canais que retém ou desviam cursos d’água para o abastecimento residencial, agrícola, industrial ou para a produção de energia. São paisagens que também podem surgir para fins de controle ambiental, como é o caso da paisagem configurada pelo barramento do rio Pequeno em Linhares/ES. As Represas são paisagens polêmicas e impõem a marca humana na alteração da dinâmica dos rios. Na região percorrida elas têm dimensões e formatos bem diferentes e podem abastecer indústrias ou produtores rurais em sítios e fazendas. Elas ocorrem em zonas rurais e urbanas e estão associadas a atividades de lazer e de pesca. As Represas se conectam ao curso do rio Doce em dois momentos: na altura do canal Caboclo Bernardo e próximo a Linhares, na altura do rio Pequeno. O canal Caboclo Bernardo transpõe a água do rio Doce para a barragem de Vertedouro, em Aracruz, e abastece a produção industrial de celulose da Fibria.

Barragem do Vertedouro. Represa conhecida como “Lagoa Azul”, localizada no município de Aracruz/ES. Fonte: Prefeitura Municipal de Aracruz, 2017.

Canal Caboclo Bernardo. Imediações do Assentamento Egídio Bruneto, em Linhares/ES. 2020.

Matas

Fragmentos verdes

As Matas são paisagens nativas, resilientes e estão concentradas à beira do rio Doce. A paisagem de Matas tem como elemento central a vegetação, que, a depender da posição geográfica, se apresenta em diferentes tons de verde. Elas ocorrem sob a forma de fragmentos e têm funções ambientais, sociais e culturais. Na calha do rio Doce, a paisagem de Matas pertence ao bioma Mata Atlântica e abrange diferentes ecossistemas florestais, restingas e manguezais. As Matas estão no imaginário e nas primeiras representações do território. Para os exploradores no começo do século XIX, elas eram imagem e som do selvagem, do misterioso, do divino. Para as vidas originárias e tradicionais que dela dependem são morada, fonte de contemplação, de recursos naturais e de atualização das tradições. As matas protegem as margens do rio Doce da erosão gerada pela correnteza e pela flutuação das águas do rio. Garantem temperaturas mais amenas e a reciclagem da água e dos nutrientes. Não obstante a importância das Matas para as vidas e cultivos que se organizam no território do Doce, o ciclo predatório da madeira entre 1940 e 1960 suprimiu grande parte dessa paisagem na região de estudo. Com a retração das paisagens de Matas, o território se transforma no que diz respeito ao uso do solo e abre-se espaço para o crescimento da agropecuária e da silvicultura. A partir dos anos de 1960 configura-se e reproduz-se na região a paisagens de Pastagens.

Viagem ao Brasil do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied – Biblioteca Brasiliana da Robert Bosch GMBH. – Petrópolis: Kapa Editorial, 2001.

Navigation sur un bras du Rio Doce. Maximilian Wied-Neuwied, 1822. Fonte: https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/19707/navigation-sur-un-bras-du-rio-doce.

“Ah, as árvores. Acabaram com essa paisagem bonita, as árvores…”

Elenir Rodrigues, 71 anos

Pastagens

As criações

As Pastagens são constituídas por grandes áreas e são paisagens relativamente recentes. Elas se sobrepõem a áreas desmatadas e originalmente ocupadas por Mata Atlântica ou a áreas outrora ocupadas por cultivos de cacau ou café. No primeiro plano das paisagens de Pastagens, observa-se um horizonte colorido por capim e a pouca incidência de árvores e outros elementos além dos animais, cercas, cochos e currais. Presentes em planícies e na região montanhosa, elas geram no observador uma sensação de amplitude e monotonia. Dois aspectos marcantes dessas paisagens são o silêncio e a presença de poucos trabalhadores. Pastagens é a paisagem que ocorre com maior frequência na área da Foz e no Litoral Capixaba. A elas se sobrepõem às paisagens de Indústrias, Alagáveis e Terras Altas. As Pastagens da área percorrida são majoritariamente voltadas à criação de gado leiteiro e de corte. Elas se relacionam com o rio Doce quando estão próximas das suas margens.

“…ah, eu só vejo boi. É, ué… quintal, como é que fala? É… Fazenda né? Curral, eu só vejo isso…”

Léia dos Santos Silva, 41 anos

“em 2010, mais ou menos, começaram a fazer pasto. Não tinha. Foi chegando os outros moradores (…) foram chegando e foram comprando, daí foram fazendo. Mas não tinha” (Maria da Conceição dos Santos, 74 anos)

Paisagem de pastagem com sobreposição de área de gasoduto. São Mateus/ES, nas proximidades da comunidade de Ilha Preta. 2020.

Pastagem em montanhas. Linhares/ES, 2020.  

Pastagem próxima à localidade de Jacupemba, na zona rural de Linhares. Janeiro, 2020. 

Indústrias

As Indústrias são paisagens que se impõem no território. Ora podem ser vistas e têm estrutura pequena, ora estão entre muros e são gigantescas. Podem ser de alta ou baixa tecnologia e conotam o domínio sobre a natureza, o progresso e o crescimento econômico. Mobilizam a força de trabalho qualificada de centros urbanos da região e geram renda para o setor de comércio, construção civil e serviços locais. Extratoras de areia, gasodutos, estaleiros, plantas de extração de gás natural, fábricas de celulose e indústrias moveleiras são atividades que caracterizam as Indústrias no litoral do Espírito Santo e na foz do rio Doce.  Nessas paisagens, o tempo e o espaço produtivo contrasta com o tempo-espaço vivido e percebido pelas comunidades vizinhas a essa paisagem. Muitas comunidades locais nem sabem o que é produzido nas fábricas. A relação do rio Doce com as paisagens de Indústrias se dá de várias formas. Até antes do rompimento da barragem de Mariana em 2015, operavam nele indústrias de extração de areia para a construção civil. Pelo seu leito atravessa o gasoduto que sai da Unidade de Tratamento de Gás em Cacimbas (UTGC) rumo às instalações da Vale em Vitória. Próximo à foz é possível ver sinalizadores dos dutos que atravessam o leito do rio. Desde meados dos anos de 1980, as empresas do setor petrolífero estão presentes na baixada litorânea do rio Doce. Os mosaicos de paisagens Indústrias e Pastagens e Indústrias e Eucalipto se sobrepõem constantemente no litoral ao norte e ao sul do rio Doce. O setor petrolífero tem um papel relevante na produção de receitas municipais do Baixo Doce e do Litoral Capixaba.

Porque eles não vêm conversar, simplesmente, vão chegando e se instalando de qualquer jeito aí e acabou. Nosso povo é um povo que não tem cultura e tal, não tem conhecimento, aí eles vão chegando e fazendo de qualquer jeito. (…), mas para nós não há novidade, que ela vai conseguir se instalar, vai, só que vai encontrar um embargo que nós vamos estar brigando, nós vamos. Mas nós sabemos do nosso tamanho né? Nós sabemos, ela é uma empresa multinacional, então é difícil, é difícil”

Sebastião da Assunção, 60 anos

Usina de Tratamento de Gás Cacimbas (UTGC), em Cacimbas. Linhares/ ES, 2020.

Fábrica da Aracruz Celulose em Aracruz/ES. Década 1970. Fonte: Acervo IBGE. 

Roças

O íntimo e a subsistência

As paisagens de Roças são construídas por grupos sociais com o objetivo de prover subsistência e sustento. Elas são marcadas pela agricultura diversificada, pela criação de animais para consumo e pelos ciclos do plantar e colher. São paisagens ligadas ao ambiente rural e às pequenas propriedades de famílias que se instalaram na terra e dela vêm subsistindo por gerações. Por isso mesmo, são associadas a um modo de vida que é considerado duro, mas que proporciona um pedaço de chão onde se constrói dignidade e do qual se tem orgulho. Os elementos que caracterizam essas paisagem são estradas de acesso não pavimentadas, a sensação de segurança e a relação de conexão com a natureza. As Roças ocorrem em comunidades rurais das regiões montanhosas do município de Linhares e em comunidades tradicionais. O rio Doce tem uma conexão forte com as paisagens de Roças, pois suas margens e ilhas naturalmente irrigadas  favoreceram a fixação dessa paisagem aí. 

“Menina, é uma vida assim muito batalhadeira né? A gente tem que batalhar muito para adquirir as coisas, mas é um lugar bom de sobreviver”

Maria Aparecida, 42 anos

É que às vezes Deus está na roça e na cidade, mas eu acho que na roça tem mais uma facilidade de criar os filhos do que na rua. A realidade da violência, né?”

Mauro Cesar dos Santos, 60 anos

Propriedade da família de Maria Glicéria Turíbio em Palmitinho. São Mateus/ES.

Conjuntos habitacionais

Moradias como direito

Os Conjuntos Habitacionais são paisagens que refletem o crescimento urbano acelerado, a desigualdade social e a operacionalização de políticas de acesso à moradia popular. Trata-se de paisagens recentes e que surgem no espaço urbano do território percorrido em meados dos anos 2000. Quando observadas de longe, elas chamam atenção pelas construções padronizadas e sem muros. Localizadas em zonas periurbanas de expansão da cidade, são paisagens relativamente afastadas de serviços públicos essenciais como escolas, postos de saúde e linhas de transporte. Nos Conjuntos Habitacionais residem trabalhadores majoritariamente empregados no setor de serviços, comércio e indústria e aposentados de baixa renda. Observa-se a existência de pequenos comércios tocados por moradores locais, bem como uma sociabilidade particular: grupos de idosos reunidos em pequenos grupos; crianças brincando nas ruas;  animais transitando livres entre os lotes e pelas vias. Presente em áreas periféricas do centro de Linhares e Barra do Riacho, os Conjuntos Habitacionais também estão associados ao descaso do poder público e à violência. No município de Linhares, o rio Doce se conecta a esta paisagem pela proximidade física e pelo imaginário popular que apropria o rio nos nomes dos conjuntos residenciais.

“Eu penso que se tivesse uma infraestrutura melhor, um posto policial. Já vai fazer sete anos que estamos aqui e essas providências ainda não foram tomadas” (Vilma Rodrigues, entrevista concedida ao portal G1) Acesso em 14.mai.2020.

Conjunto Habitacional Rio Doce inaugurado em 2018. Linhares/ES.

Conjunto Habitacional do programa Minha Casa, Minha Vida em Barra do Riacho. Aracruz/ES, 2019. 

Café

O verde e o vermelho

A exploração do rio Doce e a interiorização da ocupação da bacia no século XIX abriram os caminhos para as Paisagens de Café na região. O café é uma cultura agrícola importante para a economia local. Ele é o elemento que marca a Paisagem Café que, por sua vez, acumula tempos e processos socioeconômicos estruturantes da história do Brasil. Trata-se de uma paisagem que remete à escravidão, a presença da população negra na região e à imigração alemã e italiana para o Espírito Santo no começo do século XX. Ela ocorre com frequência nas áreas montanhosas e de temperaturas mais baixas. Nesta paisagem, fileiras homogêneas de cor verde escuro e aspersores de irrigação preenchem os morros até onde a vista alcança. Observa-se na paisagem Café o predomínio do regime de trabalho de meeiros e da mão de obra familiar. A ocorrência desta paisagem está associada à subtração da Mata Atlântica nativa e à poluição hídrica pelo uso de agrotóxicos. No território percorrido, a paisagem Café vinha perdendo espaço para a expansão das paisagens de Pastagens e de paisagens de Eucalipto. No entanto, desde os anos 2000, políticas públicas do Estado reanimaram o setor. Investiu-se na mecanização e em técnicas de manejo e beneficiamento e, hoje, Linhares, no Baixo Doce, é o terceiro maior produtor de café do Brasil. A relação de Café com o rio Doce se dá no trânsitos de pessoas, bens e serviços gerados a partir dele. 

Monocultura de café em área montanhosa do município de Linhares (ES).

“aonde meu pai mora, que tem a fazenda, não sei se vocês já ouviram falar, é a antiga fazenda do Barão do Tibuí. Vocês já ouviram falar? (…) tinha as ruínas, né? Então antes do meu pai, tinham outros fazendeiros que foi depois do Barão do Tibuí, entendeu? Então era tudo… Tinha café da época dos escravos ainda quando o pai do meu pai, que é meu avô, comprou. Tinha café da época dos escravos, tinha os engenhos de casa de farinha”

Cláudia Martins Rigonis, 42 anos

Monocultura de café em área montanhosa. Linhares/ES, 2020.

“eu não sei te dizer se é água limpa da cachoeira ou se é água poluída. Porque devido os plantios de café, né? Café e a pecuária que o rio corta né, antes de chegar na cachoeira, ele passa nessas localidades né? Então quando chove, se tem agrotóxico na lavoura eu acho que vem na água né? Então não tem aquela preservação como deveria ser né?”

Flávia Onorato, 33 anos

Lagoas

Águas interiores e internas

As Lagoas são mares interiores de água. São paisagens marcadas pelo protagonismo das lagoas, por ilhas e pelos usos múltiplos associados a suas águas, praias, fauna e beleza cênica. As maiores lagoas da região foram formadas numa escala de tempo geológica e têm sua origem condicionada à presença de planície litorânea mal drenada e com baixa declividade. As Lagoas têm águas mais calmas do que os mares e rios e configuram espelhos d ‘água emoldurados. Elas estão nas percepções dos povos indígenas – Juparanã significa “mar de água doce” na língua Tupi, por exemplo- e nas representações do Brasil Império. São paisagens mobilizadas para a construção do imaginário popular deste território e seus nomes e representações são apropriados em eventos locais e atrações turísticas. As Lagoas podem ser paisagens de conflito e degradação ambiental quando seus recursos naturais são disputados ou privatizados por diferentes grupos sociais. As Lagoas do território estão conectadas à paisagens de Praias, Vida nos Rios, Cultivos Agrícolas e Florestais, Vidas nos Mangues e Vidas Quilombolas. A paisagem de Lagoas que ocorre no Baixo Doce e, em especial na lagoa Juparanã, se conecta ao rio Doce sobretudo em eventos de cheias, quando há troca de fluxos de água, fauna e matéria orgânica entre esses corpos hídricos. Em 2015, com o rompimento da barragem de Fundão, a construção da barragem no rio Pequeno interrompeu essa conexão para preservar as águas da lagoa e provocou alterações socioambientais nesta paisagem. 

Lagoa Juparanã, Linhares/ES. Meados de 1940. Fonte: IBGE.

Cartaz publicitário da volta na Ilha do Imperador. 2017.

“Gostei muito de estar assentado na ribanceira de pedra do lado da barreira da margem esquerda da lagoa…Havia no cimo da ilha um bom barracão, coberto de sapé e outros dois menores .Há uma ilha pequena, entre a margem direita da lagoa e a ilha da pedreira, com que se comunica com um istmozinho de Terra.” (Palavras do Imperador D. Pedro II, 1860)

“(…) nós temos a Lagoa de Juparanã que é a maior do Brasil em volume de água. Nós temos a Lagoa das Palmas que é a maior do Brasil em profundidade, nós temos a Lagoa Nova que tem um gênero de peixe endêmico, só existe nela, então nós temos coisas assim…”

Elber Tesch, 37 anos

“Quando você olha em cima do alto da Bela Vista aquela lagoa [Juparanã], você fala que é um mar de água doce. É a coisa mais maravilhosa que tem”

Reuber Nascimento, 61 anos

“…o que prejudica mais é o uso do solo na beira das lagoas. Que eles batem o produto né, querendo ou não a terra filtra e cai na lagoa do mesmo jeito, aí os produtos acabam matando os peixes e acabando, estragando a água, a água potável né? Querendo ou não essa água é a melhor que tem nessa região” 

Vitor Braz, 19 anos

“Aqui, você não tem mais peixe aqui não, a lagoa Juparanã, depois que fizeram aquela barragem, como é que tem peixe?” “Olha bem porque tem esses troncos. É porque tinha as árvores do lado de cá e gado do lado de lá. Agora [depois da barragem do Rio Pequeno] não tem mais… debaixo daquela árvore ali que morreu, eu lia e o leito da lagoa era a vinte metros para lá ”

Maria Lúcia Grossi, 78 anos

Cidades

Pluralidades, intensidades, ritmos e impulsos industriais - motores de transformação

As Cidades apresentam um tecido social heterogêneo, acumulam construções de diferentes tempos históricos, têm um modo de vida único e formas específicas de organização política e econômica. As Cidades concentram bens e serviços de alta complexidade, e por isso, são paisagens que atraem e repelem olhares, turistas e pessoas de diferentes lugares. Há quem venha para uma temporada. Outros vêm e logo vão embora. Tem gente que nunca saiu e gente que não quer mais voltar. Nas Cidades coexistem culturas, rendas e ritmos, mas a segregação socioespacial e as contradições são marcantes. Elas são centros de  desenvolvimento e oportunidades, mas não são democráticas na oferta de serviços essenciais como saneamento básico, educação e saúde. Na foz do rio Doce e no Litoral Capixaba as Cidades remontam à ocupação portuguesa no século XVI. Atualmente, nesta região, elas são paisagens de expansão. O crescimento do setor industrial e do setor de serviços nos últimos vinte anos atraiu um intenso fluxo de pessoas e ampliou a quantidade e qualidade de serviços oferecidos e de áreas construídas (Mapbiomas, 2019). Os municípios de Linhares, Aracruz, São Matheus e Conceição da Barra já têm mais de 78% de seus moradores vivendo em cidades (IBGE, 2019). A urbanização acelerada característica da maioria das cidades médias localizadas na calha do rio Doce conecta a paisagem de Cidades ao rio Doce. O rio Doce forja a identidade do Linharense que se orgulha da beleza do rio que corta a cidade. A ausência de saneamento básico para todos e a ocupação irregular das margens do rio Doce causam poluição hídrica, inundações e desastres sociais nas temporadas de chuva.

Rio Doce na altura de Linhares. Fonte: Fundação Renova, 2020.

“Eu gosto da minha cidade, [São Mateus] é um lugar aconchegante, é um lugar assim, de adaptação, é fácil pra todo mundo, tem opções né, de coisas pra você fazer, apesar que é simples, mas tem muita coisa relacionada ao cultural, tem uma influência muito forte também da cultura negra na cidade, é muito bonita como eu te falei. Apesar de eu não acompanhar muito, eu acho interessante, tem a Folia de Reis, tem o trabalho do pessoal quilombola né, as comidas típicas, tem a moqueca da nossa região que é muito falada, a moqueca capixaba. É um lugar que…no Centro da cidade fica a meia hora da praia, pra quem não gosta de praia tem os rios é um acesso bem fácil né?”

Rui Barbosa, 43 anos

Porque o município (???) , ele não está preparado para que venha esse mundaréu de gente de fora e eles não querem voltar. Eu fico vendo, as pessoas que chegam aqui… agora há pouco veio uma família e eles vieram trabalhar aqui por um período. As crianças não querem ir embora! Não quer ir embora, não quer ir embora. Não vai voltar. Então eles ficam, mas acaba ficando sem emprego. Aí vai juntando, sabe, vai caindo demais a qualidade de vida dessa população geral. Porque quando a população aumenta, né, e você não tem infraestrutura para todo mundo, a natureza vai sofrendo também. Porque aí eles vão criando os métodos práticos e fáceis [de despejo dos resíduos domésticos]. Aonde eles fazem? Nos rios. Para onde é direcionado? Para o mar. Então é isso que vai acontecendo, entendeu?”

Georgina Morais, 70 anos

Vista aérea de São Mateus na segunda metade do século XX. Fonte: IBGE.

Porto de São Mateus. Conceição da Barra. Acervo IBGE.

Vista aérea de Linhares em 1975. Acervo IBGE.

Cidade de Linhares. Fonte: Acervo Fundação Renova, 2018.

Represas

as águas cercadas

A paisagem de Represas também ocorre no distrito sede de Linhares, no rio Pequeno. O rio Pequeno conecta o rio Doce à Lagoa Juparanã. Quando houve o rompimento da barragem de Fundão, o barramento foi construído para evitar que a lama de rejeitos tóxicos contaminasse as águas da lagoa Juparanã.

Acessos

As ligações construídas e nativas, o trânsito

A paisagem de Acessos denota aproximação. Na área de estudo ela ocorre para viabilizar o deslocamento histórico de pessoas, serviços, mercadorias e de culturas humanas, agrícolas, minerais e florestais. Os elementos que caracterizam essa paisagem são as estradas, as pontes, as ferrovias, os portos e os próprios rios que cortam o território. Um atributo marcante é a sensação de movimento. As trocas que elas direcionam. Desde os tempos coloniais a paisagem de Acessos evoluiu em materiais, formas e distribuição. No território, elas conectam localidades, sobrepõem-se, dividem-se e se fusionam a outras paisagens. Dentre os Acessos que ocorrem em estradas, destaca-se a ES-010 que permite a conexão pelo litoral entre a capital Vitória e os municípios do Norte; e a BR-101, que promove a mesma conectividade entre o Norte e o Sul do Estado, pelo interior. Em relação a Acessos relacionados às ferrovias, tem relevância no território a Estrada de Ferro Vitória Minas sob concessão da empresa Vale. Embora faça o transporte de pessoas, a Estrada de Ferro Vitória Minas é  utilizada principalmente para o escoamento de minérios, aço e celulose do interior de Minas Gerais até os portos do litoral do Espírito Santo. Sobre paisagens de Acessos em pontes, ressalta-se a importância das pontes Joaquim Calmon e da ponte Presidente Getúlio Vargas, hoje em ruínas. A ponte presidente Getúlio Vargas integrou Linhares ao restante do Brasil, tendo um papel histórico fundamental na consolidação econômica e política desta região. Alguns exemplos de Acessos em portos marítimos são o Porto de Barra do Riacho em Aracruz, também conhecido como PortoCel. O Porto de Regência, em Linhares, de uso privado da Petrobrás. E o Porto Norte Capixaba, em São Mateus, também sob tutela da Petrobras. O rio Doce é uma paisagem de Acessos. De meados do século XIX até 1950, quando a navegação por ele foi estimulada, o rio Doce foi uma importante via de deslocamento entre localidades no Espírito Santo e Minas Gerais. Devido ao assoreamento do leito, o rio não é mais navegável por grandes embarcações. No imaginário local, o Vapor Juparanã ainda é recordado com saudosismo.

Auto de linha na estação João Neiva. Fonte:http://www.ferreoclube.com.br/

Vapor Juparanã, embarcação que fazia o transporte de passageiros pelo rio Doce no começo do século XX.

Presidente Getúlio Vargas inaugura ponte sobre o Rio Doce, Linhares, ES. Agência Nacional Brasil, 22/06/1954. Fonte: Ministério da Justiça – Arquivo Nacional.

“Linhares antes da inauguração da ponte, com a interligação da BR101, Linhares tinha trinta mil habitantes, após dez anos da inauguração, tinha cento e trinta, entendeu? Então você via aquela imagem, daquela ponte arcada, que virou símbolo nacional. Todos os produtos de Linhares que tivessem um poder de apelação de mídia viam a ponte como representatividade de Linhares. Então a imagem de Linhares”

Reuber Nascimento, 61 anos

“Rapaz, essa estrada nossa aqui, essa estrada é histórica, porque por aqui passavam os escravos que vinham de Queimados, aonde houve a senzala né? Eles passavam por aqui para Nova Almeida para negócio de corte de cana, então usava essa estrada nossa aqui”

Sebastião da Assunção, 60 anos

Alagáveis

transformáveis e transitórias

As paisagens de Alagáveis têm natureza sazonal. Ou seja, variam segundo as estações do ano. Sua aparência é instável. Nos períodos de cheia a água é o elemento protagonista. Nos períodos mais secos é a vegetação ou o solo. As paisagens de Alagáveis ocorrem perto de rios e lagoas, nas planícies interplantálticas e no delta do rio Doce. Assim como as paisagens de Lagoas, elas se formam devido ao baixo grau de declividade dessas áreas. As Alagáveis se sobrepõem às demais paisagens existentes no território. As vidas nas paisagens de Alagáveis se adaptam ao constante subir e descer das águas. Na seca, as Alagáveis são parte dos quintais das casas dos ribeirinhos, são estradas e caminhos. Na cheia, esses usos são transformados pela água. Se já não é possível percorrer a estrada a pé, segue-se de barco ou em pequenas canoas. Alagáveis são paisagens usadas para fins agrícolas. O rio Doce se torna paisagem de Alagáveis em períodos de cheia, nos quais faz a irrigação natural de roças de subsistência e de lavouras de cacau situadas às suas margens e em ilhas fluviais.

Ponto de embarque e desembarque no rio Doce nas proximidades de Povoação, Linhares/ES,2020.

“Nós tínhamos (…) pântanos, a parte de cima aqui nós tínhamos pântanos. Esses pântanos, a água deles descia vagarosamente e alimentava o rio… Alimentava com uma água doce, alimentava com os peixes que desciam… alimentava… nós tínhamos muitos jacarés, entre outras espécies que nós já não vemos aqui, entendeu? Então eu acho que a recuperação de uma parte desses pântanos, onde os fazendeiros cavaram tudo para fazer pasto, seria um dos primeiros projetos, falando de meio ambiente, para equilibrar o ecossistema aqui da região”

Pedro Ribeiro Clarindo, 51 anos

Condomínios

o isolamento ensimesmado

Os Condomínios são paisagens que marcam no espaço a desigualdade social. São caracterizadas por conter unidades habitacionais de alto padrão e por terem acesso privilegiado a áreas com atrativos naturais. Moradores destas paisagens valorizam a exclusividade e a segurança. Por isso, muitas vezes, são paisagens muradas e vigiadas. Os Condomínios podem estar inseridos em grandes ou pequenas áreas. Mais próximos ou afastados de centros urbanos. Voltados às atividades de veraneio ou residência de trabalhadores. De classe média ou de elite. O surgimento dos primeiros condomínios nessa região está associado à instalação de indústrias de celulose nos anos de 1970 e à atração de mão de obra para os municípios que sediam os empreendimentos. Em Linhares e ao norte da foz do rio Doce, a ocorrência de Condomínios é mais recente e está associada à expansão de empresas do setor de óleo e gás e de logística. Trata-se de paisagens que podem gerar conflitos na escala local por privatizar áreas públicas ou mesmo por interromper ou dificultar o acesso de grupos sociais a recursos naturais, como é o caso de condomínios localizados à beira da Lagoa Juparanã. No território, essa paisagem não tem uma relação direta com o rio Doce.

Portal de entrada do Condomínio Ilha do Imperador. Imediações da Lagoa Juparanã, Linhares/ES, 2020.

Residencial Felicidade. Bairro de São Marcos em Aracruz/ES.

Cultivos Agrícolas e Florestais

Produção hidratada em fila

Os Cultivos Agrícolas e Florestais são paisagens que proporcionam uma sensação visual de uniformidade. Essa sensação é produzida a partir da observação de áreas extensas onde se combinam o ordenamento físico do plantio e espécies vegetais que apresentam, majoritariamente, diferentes tons de verde. Mamão, seringa, cana-de-açúcar, coco, pimenta e banana são exemplos de cultivos agrícolas e florestais de maior ocorrência na região da Foz do rio Doce e no Litoral Capixaba. Em menor quantidade encontram-se plantações de pitanga, graviola, arroz, milho e feijão. Trata-se de paisagens que ocorrem em áreas planas  (mamão, da cana-de-açúcar e da seringa) ou de relevo sinuoso (pimenta) e que, frequentemente, estão consorciadas (mamão-café; pimenta-café). Os Cultivos Agrícolas e Florestais são observados em assentamentos agrícolas, em núcleos familiares originários da colonização italiana, em comunidades rurais nas quais há meeiros, em fazendas nas quais os funcionários são residentes permanentes ou, ainda, em áreas incorporadas por agroindústrias. Em suas múltiplas configurações de produção e de organização do trabalho, esta paisagem representa o esforço de domesticar ambientes para o estabelecimento de lavouras. Eles dinamizam a vida social e econômica dos municípios dos quais fazem parte, sendo uma importante fonte de emprego e renda em Linhares e Conceição da Barra. As paisagens de Cultivos Agrícolas e Florestais são vetores de transformação do uso do solo no território e de supressão da mata nativa. Em um período de trinta anos (1985-2015) áreas destinadas à agricultura que somavam cerca de 11,5km2 de extensão (equivalente a 0,04% da área de estudo), passaram para 753,5km2 (ou 2,35%). Atualmente as culturas agrícolas totalizam 3% da área de estudo, somando cerca de 965,5km2 de extensão (Mapbiomas, 2019). Os principais produtores são os municípios de Linhares (localizado no Baixo Doce), Aracruz, São Mateus e Conceição da Barra (Litoral Capixaba), que juntos concentram 94% das áreas destinadas à produção agrícola. A calha do rio Doce está preenchida por culturas que se nutrem de suas águas, direta ou indiretamente. Diretamente, a paisagem de Cultivos Agrícolas e Florestais se articula ao rio Doce no município de Linhares, onde a localização destas paisagens se dá preferencialmente nas planícies inundáveis.

Plantação mamão com faixas que indicam se tratar de mosaicos com café. Chapadão das Palminhas, Linhares/ES, 2020.

“Tem a plantação de coco, tem um fazendeiro ali, tem a cultura de aroeira também, está com três anos que eles começaram a produzir aroeira aí, emprega um pouco do pessoal aí também…” (Mateus José Cairu, 52 anos)

Monocultura de Seringa no entorno da Lagoa Juparanã. Linhares/ES, 2020.

… tem uma usina forte de cana de açúcar e álcool aqui em Linhares, quando ainda era o corte manual, era ônibus e mais ônibus de pessoas vindo, porque antigamente era corte manual.”

Reuber Nascimento, 61 anos

Comunidades Rurais

A terra e a vida

As paisagens de Comunidades Rurais são marcadas pela presença de casas simples, de lavouras de pequeno porte, de roças de subsistência e pela criação de pequenos rebanhos de animais. Trata-se de uma paisagem que remete a um modo de vida associado ao trabalho na terra, a uma rotina de muito esforço, mas de tranquilidade e de cooperação entre vizinhos, que muitas vezes pertencem à mesma família. De alvenaria ou de madeira, a maioria das casas nesta paisagem têm varandas e paredes claras que contrastam com o verde vistoso do entorno. Em alguns casos os terrenos são margeados por cercas de vegetação, bambu ou madeira e permitem a visão parcial de seus interiores. Em paisagens de Comunidades Rurais é comum a presença de infraestrutura básica como escolas da educação básica, postos de saúde, igrejas e espaços de convivência como pequenas praças públicas. Trata-se de paisagens associadas à presença de fazendas na região ou a outras atividades produtivas relacionadas à agropecuária. Na área percorrida elas são frequentes em áreas montanhosas. Os moradores das comunidades têm origens distintas relacionadas à ascendência africana, europeia, e mais recentemente, no fim do século XX, a fluxos da região nordeste. A convergência de culturas diferentes faz com que nessas paisagens o calendário de festas populares sejam eventos importantes para a coesão social. São frequentes celebrações religiosas para São Benedito e Nossa Senhora da Saúde. Festas vinculadas às épocas de pesca, como a festa da Manjuba. E a manifestação do Jongo e do Ticumbi. É comum que próximo às Comunidades Rurais haja atrativos naturais como lagoas, córregos, pequenas cachoeiras e o próprio rio Doce, utilizados pelos moradores para a pesca e lazer. Desde os anos de 1970, a chegada de empresas de eucalipto e do setor de óleo gás vêm pressionando essas comunidades a deixarem as suas terras. É comum na região do Baixo Doce e do Litoral Capixaba, a venda de pequenas propriedades rurais para empresas e o deslocamento das famílias para a periferia de centros urbanos. As Comunidades Rurais estão conectadas ao rio Doce quando elas ocorrem próximas ao seu leito, como é o caso de Povoação.

Igreja de Santa Luzia na Comunidade Palmitinho II. São Mateus/ES, 2020.

“É onde eu moro [Fazenda Tupã, em Linhares], é onde eu tiro o meu sustento, onde eu tiro o sustento da minha família, onde meu filho trabalha, onde meu marido trabalha e eu falo que aqui é o cantinho, é um paraisozinho, né, um paraíso que nós temos”

Elizângela Lima de Freitas, 46 anos

Nós [em Putiri, Aracruz] temos uma unidade de saúde, nós temos a creche, nós temos a escola, nós temos o centro comunitário, nós temos a pracinha, agora tem um calçamento, nós temos a água da Cesam (…)”

Angelita Maria Gama, 51 anos

Comunidade rural nas margens da BR-101. Linhares/ES, 2020.

Ao norte da foz do rio Doce

Vidas Quilombolas

território, tradição e resistência

Identidade, pertencimento, ancestralidade, luta e resistência são características que qualificam a paisagem Vidas Quilombolas. Trata-se de uma paisagem que remete ao passado escravocrata do Brasil e aos impactos da ausência de políticas de inclusão socioeconômica deste grupo social. Apesar de quase contemporânea à história do Brasil, é uma paisagem constituída por comunidades tradicionais que foram reconhecidas tardiamente na nossa legislação. Só em 1988 o Estado brasileiro chancela o direito destas comunidades à terra. No território, a ocorrência desta paisagem tem origem no século XVIII e se dá em territórios não titulados, mas que se autodeclaram como quilombolas. Vidas Quilombolas são paisagens nas quais o vínculo com a terra, com as matas, com os rios, lagoas e mares é condição sine qua non para sua reprodução cultural e econômica. Essas comunidades são normalmente constituídas por poucos troncos familiares e têm no jongo, no ticumbi e no candomblé, a dança e o canto do seu cotidiano, das suas devoções e das suas lutas. Vidas Quilombolas é caracterizada pela presença de casas de construção simples e roças de feijão, milho e mandioca. No território percorrido, as comunidades têm na pesca artesanal de água doce e salgada uma importante fonte de renda. Apesar da alta frequência desta paisagem em zonas rurais, ela também ocorre próxima a áreas urbanas, como no caso do bairro Santana, em Conceição da Barra. Desde a expansão da indústria de celulose e de petróleo e gás na região em meados das décadas de 1990 e 2000 essas paisagens vêm sendo reduzidas e pressionadas. A mata nativa foi desmatada e comunidades tradicionais venderam sua terra e se mudaram para as periferias das cidades próximas. Os interesses econômicos, a ineficácia de políticas públicas e o aumento da frequência de desastres ambientais fazem com que essas paisagens e essas pessoas estejam em constante situação de vulnerabilidade social e insegurança fundiária. As paisagens de Vidas Quilombolas se distribuem em Conceição da Barra, São Mateus e Linhares, no Espírito Santo. 

Vidas Quilombolas se relaciona ao rio Doce por intermédio do mar, especialmente na comunidade de Degredo. A dispersão da pluma de rejeitos que desceu pelo rio e avançou pelo mar, interditou a pesca marítima nestas paisagens. Além de integrar o modo de vida local, a pesca é uma das principais atividades econômicas de Vidas Quilombolas.

Comunidade Quilombola Linharinho. Conceição da Barra/ES, 2020.

“Rei de Bamba
Essa espada era do meu tataravô,
Que morreu faz trezentos anos
Ficou com meu bisavô.
Meu bisavô também se foi
Passou para o meu avô,
Meu avô foi convocado
Para o Ticumbi do senhor.
Então passou para o meu pai
Meu pai muito lutou
Não podendo mais lutar
Para o mestre ele entregou
O mestre passou para mim
Para eu ser o vencedor
Eeucomelanamão
Vou fazer igual a ele
Seja aqui, seja acolá
Seja em qual lugar eu for”.
(TICUMBI DE CONCEIÇÃO DA BARRA. Secretário do Rei de Congo. In: MEDEIROS, 2007)

“Eu tenho muito orgulho de ser jongueira, eu tenho muito orgulho do povo de Sapê do Norte. São minha família, são meu povo e eu só abandono, só por morte mesmo porque foi um povo sofrido”

Maria Amélia, 67 anos

“Tudo era Sapê. Aí depois veio Aracruz celulose que veio pra cá e enganou muitos. Ia dar estudo para os filhos, vendia as terras para eles, para plantar eucalipto, vieram os fazendeiros. Aí o pessoal era muito (miserável) era bobo, deram a terra de graça. Era um correntão. A máquina de esteira pegava de um lado e pegava outra. Aí ia quebrando tudo, as máquinas, destruindo tudo. Tinha muita casa aqui, hoje não tem nada. Sessenta anos atrás”

Mauro Cesar dos Santos, 60 anos

“Era, descendente de escravo. Sofria bastante. Já tomaram muita correiada já… Não é mole não. Mas graças a Deus na nossa época aí nós não… Sofre de outras maneiras que a gente não percebe que deu, mas não é tão visível igual eles sofriam antigamente não. Sofre ainda, até hoje, mas… hoje em dia é mais… como diz o outro ‘é mais na calada’”

Gilvan Francesbilho dos Santos, 37 anos

Jongo de August Earle, 1822. Fonte:  National Library of Australia.

Ao sul da foz do rio Doce

Re-Existências

O direito, a ocupação e a produção

As paisagens Re-existências têm origem na luta histórica pela reforma agrária nos anos de 1970 e na busca por fazer valer a função social da terra: moradia e produção de alimentos. Elas evocam um duplo significado: a noção de resistência e a chance de existências mais prósperas. Re-existências na área percorrida são enclaves que ocupam áreas rurais da calha do rio Doce ou no Litoral Capixaba e estão cercadas por grandes áreas de pastagens e monoculturas agrícolas e florestais. É uma paisagem simbólica. Ao entrar-se nelas, vê-se bandeiras de movimentos sociais hasteadas e espaços coletivos com faixas e nomes que remetem à memória de companheiros. São paisagens nas quais prevalece a mão de obra familiar e o trabalho comunitário. A entrada pelos caminhos de terra que levam às paisagens de Re-existências exige respeito, mas é acolhedora. Trata-se de uma paisagem marcada por muito trabalho, pouco incentivo e por conflitos. Re-existências podem ter caráter permanente, quando já são assentamentos reconhecidos pela legislação, ou serem temporárias, no caso de acampamentos. A depender do estágio de reconhecimento, essas paisagens têm mais ou menos infraestrutura incorporada. Nas Re-existências mais antigas é forte o vínculo com a Igreja Católica, haja vista o suporte que esta instituição deu aos trabalhadores nos anos oitenta. As Re-existências identificadas no território se relacionam de forma bem diferente com o rio Doce. Antes do rompimento da barragem de Mariana, em 2015, paisagens localizadas na altura do canal Caboclo Bernardo utilizavam as águas do Doce para a pesca recreativa. Na época do Robalo essas comunidades também iam ao rio Doce para pescar. Em Re-existências identificadas próxima à calha e em Conceição da Barra, no norte, não foi mencionado um vínculo direto com o rio Doce, embora sua importância para a segurança hídrica da região tenha sido destacada.

“…É para a gente tirar para consumir pra gente e para ter renda também né? Para ter renda. Só que para ter renda… você fazer plantação para ter renda, tem que ter investimento. Irrigação, adubo, preparação do solo e a gente não tem isso”

Geraldo Comper, 54 anos

“É saber que você vive bem, que você tem uma casa em que se vive bem, e ter as plantações ali que te dá a segurança (…). O assentamento, a minha visão do assentamento, é isso”

Adilson Alves dos Santos Rigonis, 38

Produção coletiva de mudas no assentamento Egídio Brunnetto. Linhares/ES, 2020

“Tinha a intenção de criar os meus filhos num lugar que pudesse tirar pelo menos o sustento básico, com muita luta a gente conseguiu e daí na época era através da igreja né, tinha uns padres que ajudava na época, CPT , Pastoral da Terra e a gente foi participando dessas entidades a partir da igreja e a gente acabou indo em oitenta e sete que a gente conseguiu aqui, vir para cá”

Elza Soares, 63 anos

Acampamento sem-terra. Distrito de Bebedouro. Linhares-ES, 2020.

Eucalipto

A frente e o verso das polêmicas cortinas verdes

As paisagens de Eucalipto são polêmicas e dividem espaços e opiniões no território percorrido. Elas se caracterizam pela presença de florestas plantadas, por ocupar áreas extensas e por mobilizar pouca mão de obra no ciclo de vida da cultura. Ao percorrer essas paisagens por terra, a sensação é a de contornar labirintos verdes, altos e densos, que cobrem qualquer possibilidade de visão do que está atrás. Eucaliptos são paisagens criadas para alimentar indústrias de celulose e de madeira e expressam o impacto da transformação do solo pelo homem. Trata-se de uma paisagem dinâmica. Ao longo dos ciclos de produção ela muda de aspecto conforme seus estágios de desenvolvimento. Ao atingirem a altura e circunferência de corte, as densas, longas e retilíneas florestas são derrubadas, originando uma cena de devastação. Paisagens de Eucaliptos estão associadas a processos recentes de transformação do uso solo. Nos últimos trinta anos, as áreas de floresta plantada no Litoral Capixaba aumentaram em 22% e no Baixo rio Doce em 140% (Mapbiomas, 2019). Depois das Pastagens, o Eucalipto é a paisagem mais frequente na área percorrida. Ele ocorre próximo das pontas norte e sul do território e, desde a década de 1970, vem expandindo rapidamente sua área na região. O crescimento desta paisagem é um vetor de êxodo rural. A relação de Eucaliptos com o rio Doce se dá através da cessão de água para paisagens de Indústrias na porção sul do território. Ao longo da calha, o Eucalipto aparece nas Terras Altas associado aos Cultivos Agrícolas e Florestais e ao Café. Observações e escutas no território indicam que essa paisagem vem gradativamente substituindo a Café e paisagens de Pastagens.

“Os eucaliptos tomam muito… muito espaço de uma área nativa, onde você vê os animais silvestres né? (…) Você não vê nada, nem cobra. Porque não existe… a cadeia alimentar não existe para eles”

Silvano Ramos

“(…) o plantio em mosaico, áreas de florestas plantadas intercaladas com áreas de preservação natural, propicia um ambiente adequado para a conservação dos ecossistemas e a reprodução da fauna e da flora” (Suzano S.A13).

“Então, a Fíbria e a Celulose acabou tirando também umas setenta famílias aqui do fundo, que viviam aqui, que acabou vendendo pra eles e foi embora, e virou aqui, um deserto verde, o fundo nosso, um deserto verde grande, de muito eucalipto, muito eucalipto. Porque agora está na mão da Suzano, né?”

Adão Cellia, 61 anos

Plantio em mosaico no município de Aracruz/ES. Fonte: Empresa Suzano.

Floresta de Eucalipto em Aracruz/ES. Fonte: Fundação Renova, 2020.

“Lá dentro, que meu filho tem o eucalipto plantado, lá não tem mata não, lá é só pasto, eucalipto e café que ele produz café lá e eucalipto mais aqui, só isso aí mesmo”

Zelia Scarpati, 75 anos

Vidas Indígenas

As Vidas Indígenas são paisagens formadas por “gente, lugar e jeito de estar no lugar que compõe o todo” (KRENAK, 2019). Elas remetem à ocupação original do Brasil e do território, sendo reconhecidas pela preservação ambiental de suas áreas. No Espírito Santo registra-se a presença destes povos desde 7000 anos atrás. Em Minas Gerais, desde 12.000 anos atrás (IPHAN, 2018). Em Minas Gerais, a paisagem de Vidas Indígenas ocorre no território do povo Krenak – que se autodenomina Borum – e localiza-se na Terra Indígena Krenak, no município de Resplendor, à beira do rio Doce. Vidas Indígenas caracterizam-se por modos próprios de se relacionar com a natureza e com os recursos naturais, de pensar e de sentir o mundo. Nestas paisagens a natureza é fonte sobrevivência, mas também é um ser da família, uma entidade que orienta comportamentos e rituais. Na região percorrida, os povos indígenas são reconhecidos como descendentes dos “Botocudos” e receberam essa denominação devido aos adereços que adornavam suas bocas e orelhas. No século XIX os “Botocudos” se concentraram ao longo dos rios Doce, Mucuri e São Mateus. Nos séculos XIX e XX, em função da construção da ferrovia Vitória-Minas e de práticas de dispersão desses povos pelo Estado, eles foram expulsos do vale do rio Doce. Somente em 1975, devido a pressão dos movimentos sociais organizados, as terras indígenas no Espírito Santo, não sem a oposição do setor empresarial, começaram a ser regularizadas. A paisagem Vidas Indígenas não se restringe a perímetros definidos, no entanto, na região percorrida ela ocorre majoritariamente nas Terras Indígenas Caieiras-Velha II, Tupiniquim-Guarani e Comboios, no município de Aracruz. Nesta região eles se relacionam com comunitários do entorno e usufruem de recursos das matas e do rio Piraquê-Açu e seus mangues. Embora as Vidas indígenas estejam geograficamente afastadas do leito do rio Doce, elas se conectam a ele pelo interior e pelo mar. Pelo interior as águas do rio Doce chegam pelo canal Caboclo Bernardo e se misturam ao rio Riacho onde são usadas pelas comunidades indígenas para pesca artesanal. Pelo mar, as águas da Foz do Doce chegam à praia de Comboios pela dinâmica das correntes marinhas. Na dimensão cultural, a conexão das Vidas Indígenas com o rio Doce está presente na pisada rítmica do Congo cantado e dançado em Regência e nas cores e feições dos moradores da Foz e do Litoral Capixaba.

Os Botocudos do rio Doce. Fonte: série de Walter Garbe, 1909.

“(…) meu sogro era meio índio, sabe? Caboclo índio. Aí ele fala assim: olha, cuidado, ali tem uma cobra. E eu não era filha daqui, eu tremia de medo quando ouvia falar. Aí eu falei: ali tem a cobra? Como o senhor viu? Tem ali, tem sim. Olha o cheiro dela ali. Fica pra trás de mim. Aí eu ia pra trás, porque a gente ia no trilho dos Botocudos”

Astrogilda Ribeiro dos Santos, 86 anos

Fisonomia di alcuni Botocudos (1821), de Giulio Ferrari. Fonte:https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/20059/fisonomia-di-alcuni-botocudos

(…) se a gente for observar, você vai deparar com vários e várias moradores que eles têm um tio na aldeia, que tem um filho na Barra [do Sahi], que tem… Ou seja, a gente, de uma forma ou de outra, aqui não é aldeia, mas o sangue que tá aqui tá lá. E é uma cultura que a gente se sente bem melhor de entender que eles são os nossos povos. São originais”

Herval Nogueira Junior, 57 anos

Porto no rio Piraquê-açu, Terra Indígena Caieiras Velha. Aracruz (ES). Janeiro de 2020.

“Marisco assim, sempre os índios aqui tiveram mais essa cultura de extração, tanto de ostra quanto marisco. Desde essa época você consegue ali com eles”

Breno Boos, 30 anos

Kerenguatnuk capo de’ Botocudos colla sua famiglia (1821), Giulio Ferrario. Fonte:https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/20059/fisonomia-di-alcuni-botocudos

Vida nos mangues

Suspensão e sustento

Vidas nos Mangues é uma paisagem caracterizada pelo verde vivo da vegetação. Ela se configura no encontro da terra com o movimento das águas dos rios e dos mares e é marcada pela convivência de comunidades extrativistas. As águas dessa paisagem são misturadas, salobras, e dão vida a espécies e modos de vida que se adaptam a esse ambiente. A aparência das raízes emaranhadas no manguezais pode causar estranhamento aos olhos do observador, assim como o seu odor. Para compreender essa paisagem é preciso enxergar mais do que um terreno argiloso e sentir além do cheiro da putrefação. É justamente o acúmulo de matéria orgânica e nutrientes que fazem dessa paisagem abrigo e berçário de espécies marinhas. A vida humana integra essa paisagem para sua nutrição biológica e afetiva e para a geração de renda. Presente no cotidiano de gerações de extrativistas locais pertencentes ou não a comunidades tradicionais, é uma paisagem que desperta memórias, resgata saberes e produz cultura como a festa do caranguejo em São Mateus. Esta paisagem está próxima ou mais afastada de comunidades com características rurais e de baixa renda e envolve o trabalho de mulheres. Nessas comunidades, o trabalho nos manguezais tem como objetivo a coleta de crustáceos e de mariscos. As paisagens de Vidas nos Mangues ocorre no norte e no sul do litoral capixaba. No sul destaca-se a Vida nos Mangues nos estuários dos dos rios Piraquê-Açu e Piraquê- Mirim. O crescimento populacional, a rápida urbanização, o rompimento da barragem de Mariana em 2015 e eventos climáticos extremos como a chuva de granizo em 2016 vêm promovendo a degradação destes ambientes na região. A relação de Vidas nos Mangues com o rio Doce se dá pelo mar e através do movimentos de correntes marítimas e maré que promovem o encontro dessas águas.

José Pinho Ramalho no mangue localizado nos fundos de sua residência. Campo Grande, São Mateus/ES, 2020.

“Bom, aqui os que têm seu serviço, trabalham, os que não têm, trabalham no mangue”

Regina Vieira Pereira do Rosário, 52 anos

“de proximidade, e de sintonia também! Que muitos gostam de fazer pesca… pegar um siri… guaiamum… Sabe, eu acho assim, são várias coisas em torno do mangue, do manguezal do rio. Eu acho bonita essa relação”

Breno Barroso Boos, 30 anos

“O alimento vai acabando, a pessoa já não tem aquela fartura mais… aqui caranguejo nós pegávamos era de braçada quando ele andava. Hoje você vai lá pegar um caranguejo, você precisa estar procurando…”

José Pinho Ramalho, 75 anos

Raízes do manguezal no rio Piraquê-Açu. Aracruz/ES, 2020.

“Bom, a minha vida aqui foi muito boa, há uns tempos atrás tinha fartura das coisas, pegava tudo para comer. Hoje a pessoa já não acha aquele alimento mais, não acha para comer porque contaminou muito essas águas que vieram aí, sabe? (…) prejudicou nós todos aqui”

José Pinho Ramalho, 75 anos

Terras Altas

As Terras Altas são paisagens marcadas por volumes, desníveis, tons de verde e pedras. Oriundas de processos geológicos antigos, as serras e rochas da região do Médio e do Baixo Doce compõem uma paisagem testemunho da vida e da cultura humanas. De perto ou de longe elas se apresentam ao observador como uma paisagem sem bordas definidas. Destacam-se por sua imponência, por nos fazer pequenos diante de sua grandeza e imensidão. Terras Altas estendem-se até onde a vista alcança. Em representações históricas do século XVII essa paisagem motivou o processo de interiorização da ocupação portuguesa no Espírito Santo. Ela alimentava o imaginário dos exploradores sobre as riquezas minerais e criava pontos de referência no espaço. Devido a sua composição mineral, Terras Altas suscita oportunidades econômicas e remete à degradação ambiental. São paisagens ocupadas por matas endêmicas, pastagens e por culturas agrícolas e florestais. Nelas a temperatura é mais baixa e o barulho do vento frequente. Na região percorrida são paisagens que ocorrem em fazendas, parques naturais e áreas públicas. São exploradas para lazer, para a plantação do café, para a criação de gado leiteiro e, mais recentemente, para o plantio de eucalipto. A paisagem de Terras Altas não utiliza mão de obra intensiva e mobiliza o trabalho de moradores de comunidades rurais. Devido à distância espacial do leito do rio Doce, tem uma relação com ele associada ao deslocamento de seus moradores para atividades de lazer, pesca esportiva e para o trânsito das comunidades.

Representação geográfica do rio Doce e das Capitanias do Espirito Santo e de Porto Seguro. Fonte: João Teixeira Albernaz,1627. 

“Tem uma montanha rochosa na região onde o rio Doce foi atingido pela lama da mineração. A aldeia Krenak fica na margem esquerda do rio, na direita tem uma serra. Aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak, e personalidade. De manhã cedo, de lá do terreiro da aldeia, as pessoas olham para ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é melhor ficar quieto. Quando ela está com uma cara do tipo ‘não estou pra conversa hoje’, as pessoas já ficam atentas. Quando ela amanhece esplêndida, bonita, com nuvens claras sobrevoando a sua cabeça, toda enfeitada, o pessoal fala: ‘pode fazer festa, dançar, pescar, pode fazer o que quiser”.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2019, p. 10.

Morro do Mestre Álvaro visto da comunidade de Putiri. Serra/ES. 2020.